MÚSICA NA FERROVIA

Ouvi de longe uma música se aproximando e pensei: “Essa é dos anos 80”. A melodia se misturava ao bate ferro do trem que corria pela linha 11, sentido Luz.

De repente o som da canção chegou bem pertinho: saía do aparelho celular antigo de um senhor que sentou-se bem na minha frente.

A letra da música dizia: “Mil e uma noites de amor”.

E aquele sonzinho antigo me levou de volta à infância. Lembrei da escola, da segunda série, dos meus pais em casa… A música também deve ter tocado, de alguma forma, o dono do celular. Ele apoiou a cabeça com o braço – em uma posição parecida com a do “O Pensador” – e olhou fixamente para o chão.

Neste intervalo fiz uma rápida pesquisa e descobri que a música é de Pepeu Gomes e foi lançada em 1985. Assim que a canção terminou, o senhor desligou o celular, levantou a cabeça e olhou para o nada. Deu pra ver seus olhos marejados por trás das lentes da armação pesada do óculos. Logo em seguida ele desceu em Guaianases

ENTREVERO NO TREM

ENTREVERO NO TREM

Nem tinha tanta gente na plataforma da Estação Luz, porém na hora que o trem – sentido Estudantes abriu a porta, dois homens se estranharam logo na entrada. Beiravam os 45 anos de idade: um calvo de camiseta branca e o outro magro com roupa de esportista azul marinho.

Houve um rápido bate boca, olhares ameaçadores e aquela parada dramática que dá impressão que um dos dois vai partir pra cima. Apaziguou.

Cada um sentou em um banco. Ficaram separados mais ou menos por uns 10 metros de distância. Apenas o calvo, ainda com a feição raivosa, conseguia ver o esportista, de costas.

A viagem prosseguiu sem grandes novidades. O trem veio ligeiro e quando saiu de Ferraz de Vasconcelos, o sujeito calvo levantou-se e caminhou em direção ao esportista. Ele não ia descer naquele momento porque a composição ainda estava relativamente longe da próxima estação. Eu pensei: “Vai acontecer algo”

E aconteceu: o homem de branco, num movimento suave, bateu nas costas do de roupa mais escura, que estava sentado, falou algo baixinho levando a mão esquerda (com leves tapinhas de carinho) à nuca do esportista que por sua vez fez o mesmo com a mão direita (tapinhas de carinho). O reencontro durou uns 15 segundos. O de branco falou mais. O outro falou menos. Creio que ali aconteceu um pedido de desculpas, uma reconciliação, um ajuste.

O sujeito calvo então retornou e, em vez de seguir para o seu lugar, ficou perto de uma das portas do vagão. O sistema de comunicação do trem anunciou: “Proxima estação, Poá”. Não costumo (aliás, nunca faço isso) interferir nas situações das quais tenho mania de observar, mas não me contive: “Parabéns pela sua atitude”, disse ao calvo. E ele respondeu: “Não ia conseguir ir para a igreja amanhã. Não ficaria em paz”. A porta abriu, ele andou rápido e sumiu naquele cenário metropolitano.

Fiquei um tempo pensando naquilo. Aliás, um longo tempo. Fui testemunha de um pedido de perdão de alguém que realmente se arrependeu de algo.

Ah, Pollyanna

Ah, Pollyanna

Minha querida mãezinha Maria de Lourdes Pires, que hoje vive em outro plano, vira e mexe nos dizia sobre a importância de ver o lado bom das coisas. E creditava essa injeção de ânimo à Pollyanna, personagem central de um romance de Eleanor H. Poter, o qual ela havia lido em meados dos anos 80.

Quase sempre quando vou à casa da minha mãe – lá vivem meu pai e meu irmão – tenho o costume de mexer na parte dela do armário. Ainda estão guardadas algumas peças de roupa, perfumes, documentos e, estes dias, dei de cara com esse que foi um dos livros preferidos dela. Minha mãe adorava ler e é bem capaz que meu gosto pela leitura tenha sido herdado dela.

Enfim, ver a capa do livro, poder manuseá-lo e cheirá-lo (sim, adoro cheiro de livros) foi como estar com minha mãe novamente. Louco isso, né?

Viu como é bom ver o lado bom das coisas? Minha mãe sempre teve razão!

PROFESSORA MORETTI

Foi um encontro meio engraçado. Não teve contato físico e o contato visual durou menos de 8 segundos. Fazia uns 20 anos, ou até mais, que eu não via a minha professora de matemática do extinto ginásio, Lucia Moretti. Naquele começo de noite ela surgiu descendo a escada rolante da estação da CPTM de Suzano. Imagina a cena: ela descendo e eu subindo. Cruzamos como dois carros em uma estrada em direção opostas. Foi um encontro meio engraçado.

Mesmo a matemática nunca entrando na minha cabeça eu adorava as aulas da professora Lúcia Moretti. Ela dizia que gostava de ver as folhas dos nossos cadernos esfolados de tanto a gente apagar aqueles cálculos rabiscados com grafite. Erra apaga, erra apaga. Só se chega ao resultado final de uma equação de segundo grau após muito suor. A política dela era essa: quanto mais exercitarmos a matemática, mas clara ela ficará. Mesmo assim, aquilo não encaixou na minha cabeça. Nunca clareou para mim.

Ela falava da matemática com tanto amor, com tanto gosto, com tanta exatidão que eu quis tentar me dar bem como os números. Até o livro indicado por ela “Matemática e Vida” eu achava sensacional. É, mas meu caminho realmente não eram os algarismos. Entretanto, mesmo não conseguindo navegar com tranquilidade naquele mar tempestuoso de Bhaskara, eu consegui atracar com segurança e sem tantas avarias.

Sabe, eu nunca mais calculei uma equação de segundo grau. Mas me deparo com a matemática a todo momento. A nossa vida está encrustada na ciência dos números. E a professora Moretti tinha razão: não se alcança nenhum resultado positivo na vida sem antes esfolar a folha do caderno.

Bom te ver na escada rolante, professora.

Urubupungá

Urubupungá

Será que só eu percebo que o nome da empresa de transporte “Urubupungá” está grafado com a fonte “Time New Roman” nas laterais da lataria dos ônibus que prestam serviço em Osasco, na Grande São Paulo?

Não adianta. Eu sou o tipo de pessoa que gosta de observar detalhes. Até mesmo a tipografia usada para estampar o nome da empresa de transporte no ônibus que eu utilizo todos os dias para chegar ao trabalho: linha 040 – Terminal Largo de Osasco Norte – Vila Ayrosa.

Eu me lembro qual foi a primeira vez que me deparei com um ônibus da empresa Urubupungá. Foi em meados de 1988, quando fui em excursão para o programa de televisão do Sérgio Mallandro no SBT, que ainda era TVS, na Vila Guilherme, em São Paulo.

Tenho certeza. Foi um Urubupungá que nos levou. Aliás, uma ressalva aqui. Os carros de turismo da empresa tem cores diferentes das dos veículos das linhas do transporte público. Se não me engano, na época, eu fui a bordo de um ônibus marrom e branco.

Já hoje, eu ando diariamente num modelo Urubupungá da cor verde e cinza. E coincidentemente, assim como lá em 1988, ele continua me conduzindo até uma emissora de televisão.

Louco, né?

LÍQUIDO AMARRONZADO

LÍQUIDO AMARRONZADO

A armação arredondada e aparentemente leve estava bem na ponta do nariz do rapaz magro que entrou no trem (linha -serviço 710) segurando uma mochila.

Sentou-se bem na minha frente, juntou os pés magros que calçavam um par de Vans preto e sacou uma garrafa de Guaraviton Açaí.

Antes de entrar na composição, ele devia ter comido algo porque ainda finalizava uma mastigação.

Segurou a cintura da garrafa plástica com uma mão e, com a outra, tirou o lacre amarelo da tampa. Guardou o resquício no compartimento lateral da mochila (ambientalmente consciente).

Em seguida destampou a garrafa e deu uns três goles cheios do líquido amarronzado. Parecia estar muito bom.

Sabe, eu nunca tomei Guaraviton. Na verdade, nunca fui fã de bebidas à base de guaraná, energéticos e afins. Mas, naquele momento eu me vi diante de uma das melhores degustações de bebida. Pensei: “Preciso provar esse Guaraviton”.

Desembarquei na Barra Funda e antes de seguir meu destino pela linha 9 da Via Mobilidade, parei num quiosque situado perto da escada que dá acesso às plataformas e comprei uma bebida igual a do rapaz do trem.

Antes mesmo da composição sentido Osasco chegar eu já havia dado mais de 5 goles cheios do líquido amarronzado.

Amor ao primeiro gole ❤️

A propaganda, realmente, é a alma do negócio.